quarta-feira, 25 de maio de 2016

OS NOSSOS UTENTES

ALFREDO JOSÉ RAFAEL PEREIRA DA SILVA


Tem 94 anos e uma excelente memória. Está no Abrigo, como residente, há perto de um ano e enviuvou há três anos de Lourença Custódia Vieira, sua companheira de sempre.

“Nasci no Monte Novo das Fazendas. Éramos oito irmãos, dos quais agora somos só dois, sendo eu o mais velho. Ainda muito novinho viemos morar para a rua do Matadouro e depois para a Rua de Aviz. Como éramos muitos a comer e apenas um a ganhar, fui guardar porcos com apenas sete anos.”

Então e a escola? Mesmo morando cá na vila não foi aprender a ler e a escrever?

“Como já disse, a vida era muito difícil e todos os tostões faziam jeito. Comecei a trabalhar no Monte do Reguinguete, colado à Caravela, e o meu patrão era o sr. José Antas (pai). Porque o local de trabalho ficava longe e não tinha qualquer meio de transporte, nem todas as semanas vinha a casa. Ficava lá a dormir numa tarimba e a comida era fornecida pelo patrão e cozinhado pela manteeira para todos os trabalhadores. Estive nesta situação meia dúzia de anos.”

Então nunca chegou a aprender a ler ?

“Aprendi. Teria eu uns quinze ou dezasseis anos, e portanto já sem idade para entrar para a escola primária oficial, comecei a ir a casa de uma professora reformada, que morava na Rua de Aviz, e, pagando, lá fiz a 3ª classe.”

E o que aconteceu depois de concluídos os estudos ?

“Como não podia deixar de ser, voltei aos trabalhos agrícolas. Entretanto, chegou a altura de ir “às sortes”, isto é, à inspecção militar. Fiquei apurado e mandaram-me assentar praça em Lanceiros 1, em Elvas.”.

E depois de cumpridas as obrigações patrióticas …

“Regressei ao mundo rural. Porém, já por volta dos meus trinta anos, comecei a dar serventia de pedreiro tendo como patrão o empreiteiro sr. Luís Torres, mais conhecido por Luís da Volta. E até me reformar estive sempre mais ou menos ligado a esta arte da construção civil.”

Não conheceu, portanto outras actividades?

“Conheci. Como ainda hoje acontece, havia alturas em que o trabalho escasseava. Então tinha de recorrer a tudo o que ia aparecendo, inclusivamente a vender cântaros de água. Por conta do sr. Adolfo Velhinha, percorria a vila com uma carroça preparada para transportar vários cântaros e ia avisando a freguesia da minha chegada com uma campainha que agitava.”

Recordo-me dessa, ou de outra carroça idêntica, cujo condutor de vez em quando batia com uma varinha nos cântaros para saber, pelo som produzido, os que estavam cheios e os que já se encontravam vazios…

“É verdade. Mas, já agora, quero contar-lhe um episódio que me aconteceu enquanto aguadeiro e que viria a mudar completamente o rumo da minha vida. Um dos meus clientes era o sr. Júlio Guerra Pereira, cuja casa fazia esquina da rua 1º de Maio com a rua dos Almocreves. Era lá empregada doméstica, ou criada, como na altura se dizia, uma rapariga que se chamava Lourença e que um dia, por brincadeira, mas certamente já com o propósito de meter conversa comigo, escondeu-me uma das rolhas de cortiça com que os cântaros eram tapados. Eu não dei por isso e ela ia mangando comigo, mas só para ter pretexto de conversa. Rindo, gostava de me dizer que eu andava à cata da rolha. E o estratagema resultou, porque começámos a namorar e passados poucos meses já estávamos juntos. Só mais tarde casámos oficialmente.”

Digamos que foi praticamente “tiro e queda” …

“É verdade. E foi um passo importante que dei na minha vida. Demo-nos sempre bem durante os mais de sessenta anos em que vivemos juntos. E ainda conhecemos a felicidade de ter dois filhos – o Júlio e a Palmira.”

E, entretanto, foi conhecendo novas residências:

“Quando casámos fomos morar para o Monte do Lameirão, depois para um monte perto da Maia, para a Travessa da Hora das Bacias e, finalmente, para o Bairro Dr. Cunhal. Com o falecimento da minha esposa e com o meu estado de saúde a degradar-se, de tal forma que me obriga a estar confinado a uma cadeira de rodas, era inevitável uma solução. E a entrada para o Abrigo foi a melhor forma de resolver o meu problema.

Obrigado, sr. Alfredo. Foi um gosto conversar com o meu Amigo.