terça-feira, 30 de setembro de 2014

OS NOSSOS UTENTES

MARIA JOAQUINA COUVEIRO

Se quiséssemos encontrar um exemplo de entrega voluntária aos outros, a nossa entrevistada deste mês poderia servir perfeitamente para tal fim.


Vamos ouvir então, em poucas palavras, a sua história de vida:
“Tenho 80 anos e nasci algures, no campo, num monte cujo nome desconheço porque a minha mãe nunca me disse nem eu tive curiosidade em saber. Tenho apenas, como recordação mais distante, residir no monte do Curral da Légua, ali à esquerda da estrada para Évora. Ainda andei à Escola, teria eu os meus oito anos, na Amoreira da Torre. Mas só fiz a primeira classe.”

Mas porquê? quisemos saber:
“Por essa altura apareceu-me um abcesso no artelho da perna direita. O meu pai levou-me ao médico, que me lancetou mas não fiquei curada. Iam sempre surgindo novas feridas na perna, que se estendiam até quase ao joelho. Porque as dores me impediam de andar, e não tinhamos qualquer meio de transporte, tive de abandonar a escola. Mais tarde, teria eu uns doze anos, o meu pai levou-me ao hospital de Évora, onde o médico nos disse que só uma operação poderia resolver o problema. O meu pai não quis. Dizia ele que com banhos de sol e muito óleo de fígado de bacalhau eu ficaria curada.”

E ficou ?
“Claro que não. Passado um ano, quando já morava no Monte da Relva, e porque não se vissem melhoras algumas, o meu pai resolveu vir a Montemor consultar o Dr. Vicente Silva. Quando viu aquele quadro, o médico disse-lhe que eu tinha de ser imediatamente internada aqui no Hospital de Santo André para ser operada. O meu pai, então, não teve outro remédio se não o de concordar. E passado um mês estava a ser operada pelo Dr. Silva Araújo (pai). Ainda estive internada mais uns cinco meses. Quando saí, quase que tive de reaprender a andar, o que aconteceu já aos catorze anos com a ajuda da minha mãe.”

Com dezasseis anos começou a trabalhar nas duras tarefas agrícolas e a escola foi sonho que há muito estava desfeito.
 “Morávamos então perto das Artozinhas, ali para os lados da Ponte da Laje. Como tinhamos uma família numerosa, porque para além dos meus pais, éramos 6 filhos, 4 rapazes e 2 raparigas, havia que contribuir para o orçamento familiar.”

E por esta altura não surgiu o normal namorico ? Por que se manteve solteira até hoje ?
“Foram as circunstâncias da vida. Realmente, quando tinha os meus dezasseis ou dezassete anos, ainda namorei, mas as coisas não correram bem. Ele namorava com outra rapariga e foi com ela que acabou por casar. E eu nunca mais quis namoros, com receio de vir a passar por idêntico desgosto.”

Entretanto, os anos foram passando e …
“Três dos meus irmãos e a minha irmã foram casando e tempo depois o meu pai faleceu, pelo que fiquei com a minha mãe e o meu irmão Franquelim, que também nunca constituíu família. E à medida que o tempo foi passando, mais necessária eu era em casa, porque a idade da minha mãe e a doença de que padecia  se foi agravando, confinando-a a uma cadeira de rodas até aos 88 anos, idade em que faleceu. Para além disso, também o meu irmão Franquelim, que trabalhava na reparação de estradas, foi forçado a reformar-se aos 59 anos por motivos de doença. Faleceu com 82 anos. Daqui se percebe que, durante muitos anos, deixei de ter vida própria para me dedicar exclusivamente a tomar conta da casa e dos dois enfermos. Mas sentia que era essa a minha obrigação.”

Deve ter passado por muitas dificuldades, inclusivamente financeiras, no decurso dessa vida de sacrifício…
“Passei anos muito difíceis, sem me chegar qualquer espécie de auxílio. Olhe: quando o meu pai morreu, o pouco dinheiro que tínhamos destinou-se a pagar o funeral. Sem outras ajudas, fui forçada a ir ter com a Assistente Social para lhe explicar a nossa situação. Deu-me uma senha para ir fazer um avio na mercearia e uma outra senha para ir ao estabelecimento do sr. Daniel Passinha (Daniel Lopes Borges) comprar uns tecidos para fazer roupa com que fizemos o luto. Foi esta a única ajuda que nos chegou.”

Depois do falecimento da mãe, mas ainda a tomar conta do irmão, a D. Maria Joaquina resolveu inscrever-se no Abrigo dos Velhos Trabalhadores.
“Exactamente. Tinha 62 anos quando a minha candidatura foi aceite e fiquei como utente do “Centro de Dia”, tal como o meu irmão, visto vivermos juntos. Estivemos nesta situação durante quinze anos, e entretanto o meu irmão também faleceu. Finalmente, há três anos passei à condição de residente no Lar, única solução possível para o meu caso.

Enquanto esperávamos pela D. Maria Joaquina para iniciarmos esta nossa conversa, verificámos que ela saía do Posto de Enfermagem do Abrigo. Quisemos saber se estava com algum problema e explicou-nos:
“Há três meses surgiu-me uma outra ferida na mesma perna e sensivelmente em local próximo da anterior. Quero crer que não tem nada a ver com o caso que já relatei e que ficou resolvido há mais de sessenta anos. De qualquer forma, tenho feito pensos dia sim dia não mas a verdade é que a situação não fica resolvida em definitivo. Por este motivo, já foi pedida ao hospital de Évora, através das vias competentes, uma cirurgia para se resolver de vez este problema. Vamos ver quanto tempo terei de esperar.”

Pois bem: fazemos votos para que tudo se resolva como deseja e que, finalmente, possa desfrutar de longos anos em paz e com saúde.