segunda-feira, 21 de maio de 2018

OS NOSSOS UTENTES


CALINO FRANCISCO



A nossa conversa começou, quase obrigatoriamente, com o pedido de satisfação de uma curiosidade, visto que, já conhecendo o nosso entrevistado há alguns anos, sempre suspeitámos de que por trás do seu estranho nome haveria uma história para contar. E não nos enganámos. Colocado perante a questão, o nosso entrevistado prestou-se a esclarecer-nos:

“O meu nome nasceu de um erro. Eu nasci no monte dos Cufenos de Cima, pertencente à então freguesia de Safira. Naquele tempo, se se nascesse em freguesias rurais, quem procedia aos registos provisórios era o cabo-chefe da zona. Esta figura, que fazia o papel de presidente de Junta, era muitas vezes pouco mais do que analfabeto. Nessa altura, em Safira, era o sr  Sertório Lagartixa quem desempenhava essas funções. Então, no seu próprio estabelecimento, que servia de sede da Junta, tomava conta das ocorrências e fazia um relatório provisório que depois ia levar à Conservatória do Registo Civil, em Montemor, a fim de oficializar o registo e o tornar definitivo."

E foi isso que aconteceu consigo?

Logo após o meu nascimento, a minha mãe e outros familiares (uma vez que o meu pai faleceu ainda eu me encontrava no ventre materno) dirigiram-se ao representante da Junta, comunicaram o nascimento e informaram que queriam que o meu nome fosse AQUILINO. Mas o cabo-chefe percebeu mal ou errou por desconhecimento e incorrectamente escreveu Calino. Mais: a Conservadora nem sequer estranhou ter sido dado um nome insólito a uma criança e não colocou qualquer objecção ou tentou esclarecer eventual dúvida. Quando anos mais tarde tive de tirar o bilhete de identidade é que esta mesma Senhora  me disse que havia sido cometido um erro porque aquele nome não me podia ter sido atribuído. E eu respondi-lhe que tinha sido ela própria a principal culpada, porque quando o sr. Sertório lhe apresentou o registo provisório deveria ter dito de imediato que aquele nome não podia ser dado, esclarecido o assunto e procedido à necessária correcção. E mesmo nessa altura, quando a Senhora reconheceu o erro, certamente que haveria modo de emendar o nome. Mas nada fez”

E ao longo da vida deve ter sentido alguns constrangimentos e embaraços por causa de um nome tão estranho…

“Claro que sim. Tive vários episódios desagradáveis e alguns aborrecimentos por causa do nome. Quando fui para a tropa, o então major Pimenta, aqui de Montemor, quis alterar-me o nome porque o considerava um absurdo. Mas disse-me que o custo dessa alteração custava doze escudos e cinquenta centavos e só produzia efeitos ao nível da tropa, porque para andar com o processo a nível civil ia custar-me muito mais. E eu desisti do intento e respondi-lhe que ganhando eu apenas vinte e cinco tostões por mês, o valor da primeira alteração dava-me para ir algumas vezes a casa ver a minha mãe e pedir-lhe que me tratasse da roupa."

Esclarecido este “mistério”, vamos saber mais pormenores de uma vida que completou 84 anos em Março passado:

“Como já disse, nasci no monte dos Cufenos de Cima. Fui o mais novo de quatro irmãos (3 rapazes e 1 rapariga) dos quais só eu ainda estou vivo. Como também já disse, nunca cheguei a conhecer o meu pai, que faleceu antes do meu nascimento. Sem a ajuda paterna tivemos dificuldades, como é de calcular. E ainda bem novinho comecei a guardar gado. Por volta dos 13/14 anos deixei o gado e comecei a labutar no campo, o que fiz sempre até ir para a tropa. Estive a fazer a recruta aqui no 16, em Évora e depois passei para a Manutenção Militar, na mesma cidade vizinha. Foram os únicos meses de férias que tive na vida, comendo bem e trabalhando pouco.”
            Mas nunca chegou a andar à escola?

“Foi exactamente na tropa que aprendi a ler e a escrever, porque em contas eu já era um ás, porque um pastor com quem eu trabalhei ensinou-me e bem. Depois dei a matéria da 3ª classe e fiz no fim uma pequena prova, mas nunca me deram qualquer diploma.”

Acabada a tropa, novo rumo…

“Voltei, naturalmente, aos trabalhos agrícolas. Eu fui criado na zona das serras de Cabrela. Ali aprendi todas as tarefas. Só nunca tinha tosquiado ovelhas nem tirado cortiça, mas depois da tropa tornei-me um verdadeiro profissional na arte de extracção deste valioso produto.”

E então? …

“Mas com vinte e um anos mudei-me para o Freixo do Meio, junto aos Foros de Vale Figueira e por ali me mantive. Ficou para trás toda a minha vida nas serras de Cabrela, deixando lá inclusivamente um namoro, e comecei aqui um novo ciclo. Agora ouça esta: quando me mudei lançaram-me como que uma maldição (aquelas coisas que se diziam por dizer) que significava que no novo lugar só iria casar com uma viúva. Mas eu não quis saber dessa parvoíce e sempre disse que haveria de namorar e casar com uma rapariga que fosse de primeira apanha. Ainda tive vários romances mas acabei por namorar e casar, há sessenta e tal anos, com a minha actual e única mulher - Princepelinda Rosa Ferreira, cujo nome próprio também será uma raridade.”

E foi lá mesmo pelos Foros que se foi mantendo.

“Sim, claro. Estivemos ainda durante algum tempo na Suiça e, regressados, lá comprámos uma parcela de terreno onde construímos a nossa casa. Entretanto, os anos foram passando e, sem filhos, sem possibilidade de continuar a trabalhar, com menos saúde e já em idade avançada, resolvemos vender a casa nos Foros e arrendar uma outra aqui em Montemor. As contingências da vida levaram-nos a solicitar o “Apoio Domiciliário” do Abrigo dos Velhos Trabalhadores e, já este mês, começámos a usufruir, também nesta Instituição, do “Centro de Dia”. E por cá vamos estando, até que Deus queira.”

Obrigado, amigo, pela sua disponibilidade.