segunda-feira, 3 de novembro de 2014

OS NOSSOS UTENTES

JOAQUIM ANTÓNIO PINTO

“Na minha mocidade fui muito namoradeiro”, revela-nos a determinada altura da sua narrativa, com uma certa nostalgia no olhar, o nosso entrevistado deste mês, facto confirmado pela sua actual esposa, que assistia à conversa.
Mas comecemos pelo princípio:

“Nasci há 91 anos, mais precisamente no dia 22 de Setembro de 1923, em Benalfange. Fiquei orfão de mãe tinha ainda poucos meses e algum tempo depois o meu pai voltou a casar, curiosamente com uma irmã da minha falecida mãe, que era portanto minha tia e também minha madrinha. A minha infância repartiu-se entre a casa do meu pai e a da minha avó. Quando faltavam precisamente quinze dias para fazer 7 anos já o trabalho me esperava. Abalei do Monte do Espargal, perto dos Foros de Vale Figueira e fui para uma herdade nos arredores de Montemor, que se chama Terrinha, guardar umas cabritas e tomar conta de duas burrinhas. Ganhava 5 tostões por dia e de comer. Dormia em cima dumas palhas, dentro da manjedoura, e tapava-me com o que já tinha sido uma manta e que me haveria de acompanhar até mais tarde.”

Começou bem cedo a conhecer o lado duro da vida. E continuou a relatar a sua história longa e bem movimentada:
“Tinha nove anos, e porque iria ganhar 10 tostões por dia, e também de comer, fui então guardar cabras na Fazenda da Brunheira, perto da ermida da Sra. da Visitação.”

E a escola ?
“Isso era coisa que só sabia que existia por ouvir dizer…”

Depois deste desabafo, continuou:
“Por volta dos meus doze anos consegui, como ajuda de gado, uma jorna de 3 escudos por dia, secos, portanto sem direito a alimentação, na herdade da Amendoeira. Dormíamos, tanto eu como o pastor, num rego, perto de um regato, com juncos como colchão e tapava-me com a tal manta que me ia resguardando nas minhas andanças.”

Deu por esta altura um “salto na carreira profissional”:
“Com catorze anos fui ´promovido´ a moço da porta, que consistia em ter a responsabilidade de transportar água para o monte e partir e carregar lenha para a cozinha. Estava na Caravela da Robusta. Dois ou três anos depois fui trabalhar para o Monte do Sobral, perto dos Foros do Cortiço, e então já fazia todos os trabalhos agrícolas.”

Como sempre acontece nesta altura das histórias, era chegado o momento dos namoricos. E o amigo Pinto não foi excepção:
“Não fui muito bem sucedido com a minha primeira namorada. Inicialmente não me aceitou o namoro, porque a mãe dizia que ainda estava muito nova, mas deve ter começado a pensar bem e, passado pouco tempo, chegou-se ao pé de mim e disse-me que, afinal, se as outras namoravam, ela também tinha esse direito. Mas este namoro estava destinado a não correr bem. Um ano depois um meu vizinho roubou-ma e começou ele a namorar com a moça. Mas eu vinguei-me. Já andava com ela fisgada e meses depois fui eu que lha roubei a ele. Mas atenção: mesmo durante estas peripécias, continuei vizinho do rapaz e a nossa amizade nunca foi abalada. Curiosamente, esta rapariga acabou por casar mas não foi com nenhum da gente.”

Vamos então entrar num outro capítulo da vida do nosso entrevistado:
“Por esta altura e por estas bandas, costumava dizer-se que quem sabia tocar concertina equivalia a ter um burro carregado de ouro, porque se era muito considerado e, portanto, convidado para tudo o que era festa e funçanada. Então, resolvi comprar esse instrumento. Fui aprendendo sozinho, de ouvido, e a observar com atenção outros tocadores. Quando já sabia tocar umas coisas começaram a surgir os convites para ir tocar aqui e além dentro da nossa zona. Organizavam-se muitos bailaricos e a juventudae, como não tinha outros divertimentos, juntava-se a bailar onde quer que fosse.”

E aqui surgiu então a informação que acima já revelámos:
“Em jovem fui muito namoradeiro. Deixe-me contar-lhe um episódio curioso. Um dia fui a um baile ao Monte das Hortas, que fica ali perto da estrada que liga Arraiolos a S .Pedro da Gafanhoeira. Meti-me a caminho, a pé, já se vê, e quando cheguei, como não conhecia lá ninguém, fui recebido com uma certa desconfiança. Mais tarde, porém, apareceu um rapaz que me conhecia e me foi apresentando. Divulgou que eu tocava bem concertina e, como o tocador que lá estava não era assim grande artista, pediram-me para tocar umas modas. Assim foi e, a partir desse momento, parecia que já estava em casa. Em determinada altura fui dançar com uma rapariga que me perguntou por que motivo estava assim acanhado e eu respondi que tinha receio que, por não me conhecerem, me dessem cabaço. Ela respondeu-me que as raparigas dali não eram cabaceiras e que, quanto a ela, a poderia ir buscar sempre que quisesse. Estava o baile armado. A partir dali comecei a dançar com quem calhava e acabou tudo em beleza.”

Às tantas, quando o baile acabou, foi hora de regressar a casa
“Claro, e a pé, já se vê. No caminho até inventei a seguinte quadra:

   Fui a um baile ao Monte das Hortas
Estavam os ganhões à ceia
Logo por sorte me calhou
Ir bailar com a mais feia.

Não fui muito feliz na quadra, porque não correspondia à verdade. As raparigas com quem dancei não eram feias. Os versos foram feitos ali à pé de chaparro e a palavra feia só aparece porque não encontrei outra melhor para fazer a rima. Mas já que falamos de quadras, aqui vão mais duas da minha autoria:

Hoje tivemos um dia quente
E vamos ter uma noite fria
O melro da minha tia,
Já nem canta nem assobia

Divirtam-se todos bem
Nesta pequena hora
A todos digo adeus
E boa noite que me vou embora.

Foi uma fase bem animada que terminou de uma forma menos feliz:
“Na verdade eu era muito divertido e até casar fui sempre dado a arranjar namoradas. Até que um dia assentei e casei com a que seria a minha primeira mulher e mãe da minha filha, hoje com 64 anos. Morávamos no Monte de Alcanede, na estrada da Valeira, onde era carreiro. Mais tarde, já com 32 anos, acabei por me divorciar.”

E teve então que dar novo rumo à sua vida:
Passados oito anos voltei a casar com a que é a minha actual mulher desde há mais de meio século  – Rosária da Felicidade Catarro Pinto. Fomos morar para a Quinta Seca, perto de S. Geraldo, onde trabalhei mais de 30 anos.

A seguir voltou às origens:
“Precisamente. Regressei a Benalfange, onde me mantive até 1996, data em que fui residir para a minha actual morada, na Pintada. Desde Maio que somos utentes do Abrigo na vertente de “Centro de Dia”.

Antes de terminar, o nosso amigo Pinto quis expressar o quanto o desgosta nunca ter aprendido a ler e a escrever:
“A vida nunca me proporcionou essa possibilidade. Como lhe disse, comecei a trabalhar muito cedo e mesmo depois de adulto nunca estive perto dos meios que me poderiam dar essa hipótese. Deixe-me contar-lhe um episódio que ilustra bem a tristeza que é ser-se analfabeto, sobretudo se se estiver num ambiente estranho: Há uns anos, uma médica que esteve aqui em Montemor, porque tinha dúvidas quanto a uma doença que me atormentava, perguntou-me se eu estaria disposto a ir a uma consulta ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Disse-lhe naturalmente que sim e a doutora passou-me uma carta para eu entregar aos médicos, com a indicação para onde me deveria dirigir. Cheguei ao hospital, cuja dimensão eu nem sequer adivinhava. Entrei por ali dentro e sempre que via alguém de bata branca perguntava onde ficava o local que me estava destinado. Ninguém pareceu incomodar-se em me orientar devidamente. Diziam-me para ir por aquele corredor porque depois estava lá uma placa. Chegado aí, logo me aparecia outro corredor, repetia a mesma pergunta a outra pessoa e a resposta era sempre mais ou menos a mesma. Andei por ali às voltas, desesperado e já sem saber o que fazer. Até que me apareceu uma pessoa mais compreensiva, a quem expliquei a minha situação e me encaminhou correctamente. Ora se eu soubesse ler, tudo se tinha tornado mais fácil e não tinha tido nem metade das dificuldades. Foi uma grande lição que aprendi, infelizmente, tarde de mais.”

Amigo Joaquim Pinto, que vá continuando com essa lucidez e boa disposição, na companhia da sua esposa. E quando comemorar o centenário voltaremos a falar.