segunda-feira, 18 de março de 2019

OS NOSSOS UTENTES

VICENTE MANUEL ROQUE


        Depois de terem revivido, ou simplesmente recordado, os tempos de ceifeiras, azeitoneiras ou pastores, no Corso Carnavalesco em que representaram mais uma vez condignamente o Abrigo, a calma voltou a reinar no interior da Instituição. Mas por pouco tempo, porque dentro de escassos dias, mais precisamente no dia 21 deste mês de Março, pelas 10 horas, outra manifestação vai manter uma velhinha tradição popular que, infelizmente, tem vindo a desaparecer salvo raras excepções. Trata-se da “Queima do Compadre e da Comadre” que no Abrigo mantém vivo o espírito da quadra graças ao esforço, talento e persistência dos seus promotores.

            Ao nosso entrevistado deste mês, recente aquisição para a equipa do “Centro de Dia”, tudo isto ainda constitui novidade. Mas vamos então às apresentações:

            “Nasci no Monte do Valverde, perto de S. Mateus, em Janeiro de 1932, tendo já completado 87 anos. Sou casado com Umbelina Rosa Cabido Roque. Temos três filhos – Gabriel, António e Manuel – que são três joias de rapazes. Casados, e com as suas vidas estabilizadas, continuam a ser um orgulho para os pais.”

            E continua a desenvolver a sua história de vida:

            “´Era o mais novo de três irmãos (dois rapazes e uma rapariga) dos quais só eu ainda por cá labuto. Do meu pai não tenho qualquer memória, visto ter falecido quando eu tinha dois anos.”

            Perante tal cenário, não é difícil adivinhar que a família não teria então uma vida fácil…

            “Pois claro que não. E logo uma das primeiras consequências foi o facto de, com 6 anos, começar a guardar porcos por conta do lavrador sr. Marques dos Santos, que era o proprietário da Courela de S. Mateus. E ao nascer do sol aí ia eu, descalço e mal vestido, enfrentando os rigores do tempo, para o meu local de trabalho. Nem sei quanto ganhava, mas de certeza que era uma miséria”

            E a escola?

            “Isso era apenas uma miragem. Aliás nem sequer o assunto era abordado. Quando tinha já uns dez anos, a minha mãe ainda tentou que eu entrasse. Pegada com a igreja havia uma casita onde uma professora ia dar aulas. Nunca fiquei a saber se as aulas eram diárias ou não, porque não cheguei a andar lá. Parece que havia um número limitado de livros destinados aos alunos mais carenciados, que eram praticamente todos os que moravam por ali, fornecidos não sei se pela Câmara ou se por outra entidade qualquer. O que sei é que quando a minha mãe decidiu que eu havia de aprender a ler, já não havia livros disponíveis e, como comprá-los estava para além do orçamento familiar, acabou por ali a minha instrução e continuei a trabalhar no campo, aprendendo os segredos de cada tarefa.”

            Continuando…

            “A minha mãe faleceu quando eu tinha dezoito anos. Por essa altura já aprendera todosos trabalhos agrícolas e tinha a noção de que os executava como os mais entendidos. Ceifei, trabalhei com enfardadeiras, conduzi parelhas a carregar molhos de trigo para as debulhadoras, podava, fazia enxertos em vinhas e em árvores de fruto, enfim, para mim, os trabalhos agrícolas não tinham segredos.”

            E o tempo foi correndo…

            “Com vinte e quatro anos casei-me com a Umbelina e ficámos a morar no Reguengo (S. Mateus). O sr. Gabriel Carvalhinho era o padrinho da minha mulher e foi com aquele casal que ela foi criada e viveu como se fosse filha. Dada a sua avançada idade, o sr. Gabriel passou-nos a gestão da sua herdade e passámos a trabalhar nas suas terras. Pois este nosso grande amigo, quando faleceu, deixou ficar para a minha mulher uma fatia de terreno onde construímos a nossa casa e sempre cultivámos e explorámos. Cultivávamos a terra e inclusivamente construímos umas malhadas onde criávamos as porcas, vendendo depois os leitões. Foi assim que nos governámos e criámos os três filhos. Durante mais de quarenta anos fui semanalmente vender as hortaliças e a fruta que ali produzia ao Mercado Municipal. Mas a idade não perdoa e nos últimos anos deixei de ir vender ao Mercado e fomo-nos governando com as vendas de frutas, feijão, alhos, batatas, cebolas e toda a qualidade de hortaliça a pessoas que iam lá ao Reguengo de propósito.”

            Entretanto, alguma coisa correu mal …

            Recentemente fomos ambos acometidos de doença súbita que, inclusivamente, me levaram ao internamento no Hospital Distrital de Évora. Eu, felizmente recuperei em grande parte, mas a minha esposa ficou com sequelas das quais tem tido dificuldade em libertar-se.”

            Aliás, tivemos de dar por terminada a nossa conversa porque o Amigo Vicente estava preocupado com o facto da sua Esposa poder estar a sentir a sua falta e a necessitar da sua presença. Pode ser que um dia possamos vir a falar do que hoje ficou por dizer. Melhores dias para o casal são os nossos votos.