segunda-feira, 18 de agosto de 2014

OS NOSSOS UTENTES

FRANCISCO  BALTAZAR  CHARNECA  TIRA-PICOS


Com 80 anos feitos no passado dia 25 de Junho, o nosso entrevistado deste mês prestou-se de bom agrado a falar para a nossa página e, ainda que parco em palavras, lá nos foi contando os principais momentos da sua história de vida.
 “Sou viúvo, ainda não há um ano, de Maria de Jesus Ganso Ribeiro, com quem estive casado durante mais de meio século. Entrei para o “Centro de Dia” do Abrigo no dia 10 de Outubro de 2013, juntamente com a minha esposa que, infelizmente, pouco viria a beneficiar desta situação, porque faleceu no mês seguinte.”

Mas comecemos então pelo princípio:
 “Nasci no Sabugueiro, concelho de Arraiolos, onde sempre vivi, exceptuando os períodos em que os meus pais tiveram de se deslocar para outras paragens onde conseguiam trabalho.”
A escola foi sempre uma miragem, que nunca passou disso mesmo:
 “Ainda com pouca idade, os meus pais foram morar para os Foros da Branca, perto de Canha, onde não havia escola e, portanto, nunca a frequentei. Em vez disso comecei a guardar gado teria 8 ou 9 anos. A partir daí fui lançado no mundo do trabalho e o saber ler e escrever deixou de ser prioridade.”

Os anos foram passando e…
 “Mais tarde, teria para aí os meus 17 anos, fui trabalhar na lavra do arroz na herdade da Represa, onde o meu pai era o arrozeiro, mas eu fazia também os mais variados trabalhos agrícolas.”

Novo salto na sua vida:
 “Em 1955 fui para a tropa. Assentei praça em Estremoz e tempo depois mandaram-me para a Manutenção Militar, em Évora. Daqui regressei a Estremoz e passado um ano e meio fui desmobilizado e enviaram-me para casa.”

E voltou à vida antiga:
 “Sim, e à herdade da Represa, para a faina do arroz que, de uma maneira geral, me ocupava praticamente de Janeiro até Setembro, com interregnos para acudir à ceifa dos outros cereais. Claro que, livre da tropa e com trabalho mais ou menos garantido, comecei então a pensar em termos de futuro, porque não queria continuar na dependência dos meus pais.”

E agora, sim, surgiu a grande decisão:
 “Já antes de ir para a tropa eu namorava com a rapariga que eu sabia que, logo que estivesse livre da obrigação militar, viria um dia a ser a minha mulher. E assim aconteceu. Casámos ou, mais propriamente, juntámo-nos, e fomos morar para o Sabugueiro. Deste enlace nasceram quatro filhos, mas uma menina morreu passados poucos dias. Neste momento, portanto, tenho dois filhos (um mora em Sabugueiro e outro em Arraiolos) e uma filha que reside aqui em Montemor. São todos casados.”

Apesar do namoro não ter sido contrariado pelos pais, mesmo assim nesses tempos a vida não era fácil para os namorados:
 “Quando nos começámos a namorar, trabalhávamos ambos na Represa. Tinhamos de arranjar a maneira de nos encontrarmos no caminho de regresso a casa, mas com o cuidado de nos separarmos quando já estávamos perto da aldeia, porque era impensável sermos vistos juntos fora de portas. Só me era permitido falar com a minha namorada numa janela mais alta e, mesmo assim, com a mãe a vigiar. Parecido com o que se passa agora, não é ? O que dantes era de menos, agora é de mais.”

Mas, é claro, também iam a divertimentos.
 “Fomos algumas vezes a bailes no Sabugueiro, em S. Pedro da Gafanhoeira ou nalguns montes ali à volta. Isto num tempo em que as namoradas iam sempre acompanhadas, sobretudo pelas mães, para que não pusessem o pé em ramo verde. Já agora, e a propósito destes bailaricos, deixe-me contar-lhe um episódio que nunca mais esqueci. Uma vez, num monte perto de S. Pedro, organizou-se um baile com um tocador de harmónio, como era normal. À entrada da casa havia um poial com potes e cântaros com água. Ora como o pessoal era muito e a casa era pequena os empurrões sucediam-se e, a dado momento, um dos homens que por ali estava não conseguiu evitar e foi contra os cântaros, que se partiram. Foi o princípio de uma enorme zaragata. Envolveu-se tudo à pancada e à pedrada e já ninguém se entendia. Não tive outro remédio que não o fugir para evitar a confusão ou levar com alguma pedra transviada.”

Segundo nos confessa, é bem tratado no Abrigo e não tem razão de queixa seja de quem for:
 “Integrei-me bem no espírito da instituição e já fiz parte de algumas iniciativas que aqui se fazem para tornar mais agradáveis as nossas horas. Fiz teatro, entrei no coral, vou às piscinas municipais e não me escuso a ir dar os meus passeios, dos quais destaco as idas ao Fluviário de Mora e ao Palácio de Vila Viçosa. Como já disse, toda a gente me trata bem, mas sem desprimor para as restantes, gostaria de salientar o papel da D. Céu, que é realmente uma pessoa extraordinária.”

A nossa conversa chegava ao fim, mas ficámos com a certeza de que muito ficou por revelar pelo nosso amigo Tira-Picos. Fica para uma próxima oportunidade.