segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

OS NOSSOS UTENTES

LEOPOLDINA MARIA VIEIRA BENAVENTE

Vamos encerrar mais este ano de conversas com os nossos utentes, ouvindo uma senhora de 86 anos cuja memória é prodigiosa. Lembra-se de pormenores que, a serem todos aqui relatados, daria para duas páginas de jornal. Mas vamos então contar alguns. 

A D. Leopoldina nasceu em 1927, e dos seus primeiros anos só recorda privações e dificuldades. Tendo nascido em S. Geraldo, onde viveu até aos dois anos, passou depois para o Monte das Gigantas e, sucessivamente, a família morou em vários montes.

“A vida era de tal forma difícil que os meus pais, com sete filhos, tinham enormes dificuldades para o sustento da casa e, então, nem sempre havia dinheiro para pagar as rendas. O trabalho também não era certo e daí as constantes mudanças, porque não podíamos contar com a compreensão e bondade dos proprietários. Só quando os mais velhos começaram a trabalhar é que a nossa vida se alterou ligeiramente.”


Mas as melhorias não permitiram, por exemplo, que a criança que era então a D. Leopoldina frequentasse a escola.

“Era para mim um desgosto enorme ver outras crianças irem aprender a ler e eu não poder ir. E havia vários motivos para que assim acontecesse. As dificuldades económicas e a distância que tinhamos de vencer eram os principais obstáculos. Para além de que, nesses tempos, a instrução escolar não era considerada uma prioridade. Comecei a trabalhar muito cedo, não me recordo exactamente com que idade, mas lembro-me que aos dez anos já ia apanhar azeitona. Vencia, ou tentava vencer, os frios, pouco protegida em termos de roupa, com uns sapatos de borracha muito usados e, como xaile, uma saia velha da minha mãe. Ganhava cinco tostões por cada cesto que enchia, mas tinha dias em que, por causa do frio que me engadanhava, nem um cesto conseguia apresentar.”

Aos 14/15 anos  já trabalhava como uma mulher, merecendo e ganhando a jorna correspondente. E foi nesta altura da nossa conversa que surgiu uma curiosa revelação:

“Se comecei a trabalhar cedo, também cedo comecei a namorar. Tinha 12 anos quando tive o primeiro namorado que, é claro, tinha a mesma idade que eu. Chamava-se Manuel João. Andávamos os dois à monda no Monte das Taipas e, conversa puxa conversa, começámos a namoriscar. Nessa altura morava eu na Courela do Guita. Um dia disse-lhe onde era a minha casa e combinámos que ele iria lá falar comigo no Domingo seguinte. Não disse nada à minha mãe, mas comecei a fazer os preparativos. Limpei muito bem a rua do monte, inclusivamente andei a varrer a vereda por onde ele haveria de passar, arranjei-me com o melhorzinho que tinha, e aguardei. A minha mãe assistia a tudo isto sem me dizer fosse o que fosse. E eu também nada lhe disse. A nossa casa, apenas de rés-do-chão, tinha uma empena alta e lá no cimo um postigo. Como não havia janelas, esta era a única hipótese que tinha de ver e falar com o rapaz. Então, coloquei uma arca junto à parede e em cima desta uma cadeira, pois só assim o poderia ver. Mas fiz mais: no lado de fora ainda pus uns tijolos para o namorado se empoleirar e ficar mais próximo do postigo. Lá falámos o que tinhamos a falar e quando chegou perto do sol posto o rapaz foi-se embora.”

E não houve problemas com a sua mãe?

“Ai não, que não houve. Mal desci do meu poleiro a minha mãe caiu-se comigo, deu-me uma valente tareia e mandou-me acabar desde logo com o namorico.”

E pronto, o assunto ficou aí completamente arrumado…

“Nada disso. Começámos então a escrever-nos numa correspondência que durou cerca de três anos. Como já disse, eu não tinha andado à escola e, portanto, não sabia ler nem escrever. Então, era uma filha do sr. Gil  ferrador que me escrevia as cartas e depois me lia as que me eram dirigidas. Mas era uma carga de trabalhos. Mas tudo ficou por aí, tendo cada um de nós seguido a sua vida.

E depois, perguntei eu ?

“Teria já cerca de dezoito anos quando comecei a namorar o que viria a ser o meu primeiro marido, Joaquim Maria Cartaxo. Tinha vinte e quatro anos quando nos juntámos e fomos morar para o Moinho de Vento. Tempo depois fui trabalhar para casa da D. Nazaré Mousinho, que tratou de nos casar pelo Registo e pela Igreja. Deste casamento nasceram dois filhos, um que faleceu quando tinha três anos e outra, felizmente viva e de boa saúde, casada, que me deu um casal de netos. Morámos ainda na Quinta Grande e na Torre do Almansor, onde o meu marido morreu, em 1964.”

E começou então uma nova etapa na sua vida:

“Deixei de trabalhar no campo, sobretudo porque tinha medo de andar sozinha por esses caminhos. Consegui uma casinha no Bairro de Na. Sra. da Visitação e trabalhei a dias em casas de várias famílias. Estive ainda, durante uns anos, empregada na Azinhex, onde me encontrava quando casei, em 1973, portanto há quarenta anos,  também pelo Registo Civil e pela Igreja, com o meu actual marido, José Joaquim Grulha, que era igualmente viúvo. O José tinha quatro filhos, três dos quais, felizmente, ainda são vivos. Todos eles me trataram sempre com muita amizade e carinho.”

E durante todos estes anos nunca chegou a aprender a ler ?

“Cheguei, sim senhor. Quando estava na Azinhex tive como colega uma bela rapariga chamada Rosinda que, por sinal, hoje é enfermeira aqui no Abrigo. Pois foi exactamente a Rosinda que me ensinou a conhecer as letras e a juntá-las, o que me permitia, pelo menos, ler os jornais. Foi muito importante para mim. Hoje, por problemas de saúde, já nem isso me é possível fazer, mas a minha gratidão mantém-se.

A D. Leopoldina já foi operada várias vezes, duas delas aos joelhos, e viu-se privada do olho direito, mas é uma lutadora e vai encarando o futuro com um certo optimismo. 

Juntamente com o marido está no Lar, como residente, desde há quatro anos, mas já anteriormente era utente , primeiro do “Apoio Domiciliário” e depois do “Centro de Dia”.

Um Bom Natal, na companhia do José, familiares e colegas do Abrigo.