sexta-feira, 24 de março de 2017

OS NOSSOS UTENTES

ANTÓNIO  HENRIQUE  FIALHO


Com a experiência que os seus 92 anos lhe conferem, o nosso entrevistado deste mês não se fez rogado e contou algumas das inúmeras recordações que lhe povoam a excelente memória.

“Chamo-me António Henrique Fialho e nasci nos Foros de Corte Pereiro, mesmo junto à mina de carvão de pedra. Sou o mais velho de quatro irmãos, dos quais só restamos eu e uma rapariga. Com sete anos, fomos morar para o Monte da Lezíria e já teria uma dúzia deles quando nos mudámos para perto dos Foros de Vale Figueira, num monte que se chamava exactamente Monte Vale de Figueira de Baixo e depois fomos para o Freixo de Baixo.”

E no meio de tudo isso, onde entrou a Escola?
            
“A vida naquela altura era muito difícil e a ida à escola nem era assunto de que se falasse. O meu pai era ganadeiro e eu comecei aos sete anos como ajuda de guardador de porcos. E até aos catorze reparti a minha actividade entre porcos e ovelhas.”

E mantiveram-se naquela zona durante muito tempo?

“Na mesma área sim, mas noutros locais. Estivemos a seguir no Monte do Sapateiro e depois no Monte da Amendoeira. Estas transferências frequentes deviam-se ao facto da profissão do meu pai, por motivos diversos, provocar mudanças de patrão e, portanto, de locais de trabalho e residências. Com uns quinze anos passei de ajuda de gado a exercer actividades mais ligadas à agricultura: lavrava com uma junta de bois, ceifava, fui carvoeiro e pratiquei os mais diversos trabalhos no campo. E foram estas as funções que exerci praticamente até me reformar.”
           
Como é normal, estava chegado o momento de começarem os namoricos…
            
“Comecei cedo a namorar. Havia poucas distracções e então aconteciam os namoricos, combinados sobretudo nos bailes, ou funções, que se realizavam um pouco por todo o lado. Mas também, com o primeiro namoro, surgiu-me o meu primeiro grande problema.”
            
Quer contar?
            
“Comecei a namorar uma rapariga que era, sobretudo, muito do agrado dos meus pais. Porém, e como acontece muitas vezes naquelas idades, embeicei-me por outra moça. E o resultado não podia ser pior. O meu pai, sabendo disso, chamou-me “à pedra” e perguntou-me se, afinal, eu pensava casar com a primeira namorada ou se preferia esta segunda. Eu sempre respeitei muito o meu pai, mas respondi-lhe que, sinceramente, ainda não me tinha decidido a escolher a minha futura companheira.”
            
E como reagiu então o seu pai?
            
“Da pior forma possível. O meu pai, vendo que eu não estava disposto a fazer-lhe a vontade, disse-me: então, vai a casa buscar os teus pertences e procura outro lugar para viver. Conclusão: pôs-me fora de casa paterna apenas por eu não lhe garantir que casava com a rapariga que eles escolhiam.”
           
Ficou com um enorme problema para resolver…
            
“Por acaso não foi tão grande como poderia esperar. É que, por essa altura, eu já namorava uma terceira, a quem contei o sucedido. Por acaso, ou não, o pai dela ouviu e, provavelmente na esperança de eu vir a casar com a filha, ofereceu-me a sua própria casa para eu lá viver. Claro que não dormia com ela, mas encarregaram-se de me dar guarida e de me tratarem da roupa. Tudo isto aconteceu no Monte da Amendoeira, numa casa muito próxima da de meus pais. Tempo depois, esta família deslocou-se para o Barrocal dos Ricos e para o Monte do Casão e eu sempre com eles.”
            
E qual foi o desfecho desta aventura?
            
“Nestas condições estivemos uns anos. Mas em determinada altura as coisas entre nós começaram a não andar bem e eu cheguei à conclusão que ainda não era aquela que me levaria ao altar.”
            
E como eram as relações com o seu pai?
           
Ainda no Barrocal, um dia o meu pai foi ter comigo e disse-me para eu voltar para casa. Que já tinham passado três ou quatro anos desde que me tinha convidado a sair e era altura de regressar. Eu respondi-lhe que não voltava, porque se me tinha posto fora era porque não me queria lá. Sempre que se proporcionava, eu falava naturalmente com o meu pai, como se nada se tivesse passado. Continuei a respeitá-lo, a pedir-lhe a bênção como era usual nesse tempo, mas nunca mais voltei à casa paterna.”
            
Não deve ter sido fácil lidar com todas estas situações…
            
“Quando tinha trinta anos cheguei à conclusão de que era chegada a altura de normalizar a minha vida. Fui procurar a mulher que ainda hoje é a minha esposa e companheira. Com a decisão tomada, saí de casa e juntei-me com a Ermelinda.”
            
Mas é claro que teve de procurar outro abrigo.
           
“Já juntos, fomos morar para um monte que era do Manuel Marmeleira. Era uma casita muito modesta, que nem tinha mobílias, nem nós dinheiro para as comprar. Aquilo era só para não estarmos na rua. Naquele tempo, e como se dizia, era “chapa batida, chapa lambida”, o que significava que dinheiro era ganhá-lo e gastá-lo. Vi-me então na necessidade de ir ter com o meu pai e pedir-lhe que me emprestasse o dinheiro necessário para comprar as coisas mais essenciais. Ele disse-me que sim, mas sempre realçando que se tratava de um empréstimo e não de uma oferta, pelo que teria de pagar quando pudesse. Foi buscar setecentos escudos (hoje três euros e cinquenta cêntimos) com os quais comprei uma cama, uma mesa e quatro cadeiras. E logo que me foi possível saldei a dívida como, aliás, era a minha obrigação. Já, então, vivia noutra casa.”
            
E a relação com o seu pai continuou na mesma?
            
“Anos mais tarde, já a minha mãe tinha falecido, o meu pai ia visitar-me a minha casa, porque vivíamos perto. E eu nunca deixei de me dar com ele e continuava a respeitá-lo e acolhia-o como se nada tivesse acontecido.”
            
E o tempo foi passando…
            
Com quarenta anos, casado e já com os meus dois filhos – o Joaquim António, hoje com 57 anos, e a Ana de Jesus com 54 – emigrei para a Suiça, onde me mantive durante 9 anos. A minha mulher só lá esteve comigo cerca de um ano. Passada essa fase voltámos os dois ao trabalho agrícola mas, com o dinheiro que amealhei como emigrante, construi uma casa nos Foros de Vale de Figueira, que tive de acabar por vender devido à grave doença da minha mulher que, na altura, ainda esteve cerca de um ano no Lar da Quinta da Ponte.”

            
Até que aconteceu a vinda para o Abrigo.
            
“Com a doença da minha mulher e a minha idade já avançada, que não me permite deslocar sem o auxílio de canadianas, pedimos para sermos recebidos como residentes aqui no Abrigo. Todavia, foi-nos dito que, apesar de toda a boa vontade, não era possível atender este pedido porque não havia vagas. E nós compreendemos a situação. No entanto, foi-nos oferecida a hipótese de frequentarmos o “Centro de Dia”, que aceitámos porque a nossa filha, que reside em Montemor, se disponibilizou para irmos dormir a sua casa. Mas, claro, estamos sempre na esperança de, um dia, conseguirmos a vaga que até hoje tem faltado.”
            

Agradecemos ao Sr. Fialho a disponibilidade para mantermos esta conversa e desejamos que os seus desejos se realizem logo que possível.